— Aquele que conhece a posição e a relevância de uma ideia dentro de todo o panorama de uma cultura, acaba sabendo muito mais sobre ela do que o especialista, que penetrou-lhe todos os rincões, mas não saberia pesá-la e contextualizá-la. A especialização, se não for apoiada em uma apreensão geral, cria inteligências mutiladas e inférteis.
— Tanto homo sapiens quanto homem racional me parecem definições insuficientes para a espécie humana. A de Eliade, homo religiosus, talvez seja a mais acurada: o homem como o animal que anda de pé, com o olhar voltado para cima, sempre em busca de um norte, um sentido, um princípio; e que é capaz de habitar tanto os desertos quanto as selvas e as tundras, pois o seu verdadeiro habitat é algo que jaz além deste mundo insuficiente. Não à toa, lembro-me de ter lido em Platão que o grego anthropos teria, em sua origem, o significado de “o animal que olha para cima”.1
— No mito, o deus Eros se apaixona por Psiquê, uma mera humana, e decide tomá-la em casamento, impondo apenas a condição de que ela não poderia jamais desvendar-lhe a face e a identidade. A moça aceita, e por algum tempo ambos mantêm uma relação envolta, sim, pela sombra do mistério, mas mantida clara e aquecida pela vela da fé.
As irmãs de Psiquê, porém, roídas pela inveja, vão de pouco em pouco, de rumor em rumor, assoprando-lhe no coração a desconfiança, até a chama da fé balançar, definhar e enfim desaparecer: casada com um deus, Psiquê começou a atormentar-se com a ideia de que dormia ao lado de um monstro. Foi essa angústia que a fez romper com a cláusula do matrimônio, usando de uma lamparina para tentar desvendar as feições do marido durante a noite; este, depois de fulminá-la com sua imortal beleza, bateu as asas e abandonou a esposa infiel.
O leitor provavelmente conhece as diversas penas e desafios a que Psiquê se submeteu depois, para recuperar o amor daquele deus que ofendera. Mas eu interrompo o relato por aqui, pois já passamos pelo detalhe que nos interessa: os rumores e as sombras deste mundo fazem Psiquê tomar um deus por um monstro. Como diz São Paulo: “Videmus nunc per speculum in aenigmate”2 — e é próprio do espelho inverter aquilo que reflete. Aos olhos deste mundo, o verdadeiro bem parece um mal a ser evitado; os que aqui choram, serão consolados; os pobres daqui, serão herdeiros do Reino, e os perseguidos julgarão o mundo.
— No mar da vida, entre as ondas que vão e vêm, se formam e se arrebentam, há sempre algo que permanece, como um rochedo. Os homens que passam pela existência sem percebê-lo são levados pelas águas em direção à morte e ao esquecimento. Mas aqueles que o encontram e o agarram tomam para si parte de sua sólida perenidade.
— A fada do panteísmo, por mais seduzente que pareça, aproxima-se sempre escondendo às costas as garras com que sufocará no homem a fé em sua própria liberdade. Os estoicos foram os primeiros a cair em seu feitiço: para eles, o divino a tudo anima e perpassa, e, portanto, não sobra nenhum espaço para a humana decisão e iniciativa. “Ducunt volentem fata, nolentem trahunt”3, escreveu Sêneca.
Outro recanto histórico em que encontramos a tentação panteísta é o Renascimento4, e ela foi logo seguida por uma tremenda vertigem em relação à Fortuna, à capacidade do homem de combater e domar o destino.
Como não lembrar também de que esta mesma e fatal fada bateu as suas asas sobre os alemães do romantismo, os quais seguiram-na encantados através do século XVIII até o beco do XIX, quando ela os traiu e lhes verteu na veia o veneno do determinismo. A Alemanha agonizou, então, em um tormento profundo que saltou para a superfície da história em nomes como Marx e Hitler.
— Justifico o meu vício. “Escrever todas as coisas em um livro é deixar uma espada nas mãos de uma criança”: a frase é de Clemente de Alexandria5, mas essa desconfiança que nela encontramos era comum e difundida entre os antigos. Invoco apenas os exemplos de Sócrates, que nada escreveu, e o de Platão, que aconselhava Dionísio II a evitar as publicações filosóficas6, temendo as previsíveis más interpretações do vulgo. Mas as ideias expostas assim como faço, esparramadas e incompletas feito sementes, seleciona os leitores dispostos a regá-las e trabalhá-las com a meditação, caso queiram vê-las maduras e plenas.
— O demônio habita as abstrações. O erro não se insinua no sensível, no contato direto com o mundo em torno, mas sim através das fissuras e insuficiências do que imaginamos depois. Tenho mesmo a impressão de que o pecado é sempre uma abstração: o mundo da pornografia, por exemplo, é uma estrutura etérea, feita de pura luxúria, e esvaziada de todas as considerações e preocupações da vida concreta; é como se o demônio nos envolvesse em um ar cada vez mais rarefeito e fantasioso para nos sufocar.
— Deus parece conceder a alguns homens uma experiência condensada, uma capacidade de absorver e processar em alguns anos aquilo em que os demais demorariam décadas, e é assim que se formam as almas dos místicos, dos poetas e dos filósofos.
— Ainda a Tropicália. Apesar da República e do blues, do jeans e do rock, dos automóveis mais modernos que podem correr em nossas rodovias, ou dos celulares mais tecnológicos que podemos ter em nossas mãos, é impossível não perceber os instintos tribais e primitivos que persistem na própria veia e na própria carne do povo brasileiro. Um exemplo é o culto aos mortos, presente tanto na sua versão mais sincera, isto é, as religiões de matriz africana, quanto no espiritismo, onde esse instinto tribal tenta se fantasiar sob as piores modas ideológicas importadas do estrangeiro. Além disso, aquela mesma preferência pelo pessoal, pelo orgânico, que Borges notou entre os argentinos7, é também um dos traços mais marcantes do nosso povo: nós também não somos cidadãos, e sim indivíduos, e nosso Estado está condenado ao fracasso, pois não conseguimos compartilhar da mesma concepção de mundo científica e impessoal necessária para fazer funcionar essa tecnologia moderna, demasiado moderna.
Encerro aqui outra miscelânea da minhas caçadas ou imprudências, a qual, tendo acumulado duas edições, eu já posso cometer a fanfarronada de chamar de revista de um homem só. Confuso misto de literatura com filosofia, de ensaio com aforismo, que às vezes parece ser pouco de um, nada do outro e vice-versa, mas que ao fim e ao cabo não é mais do que o esforço de um filósofo tentando se formar a partir das cinzas de um jovem que aspirava ser poeta. Não seja o leitor severo, portanto.
“Crátilo”, Platão.
1 Coríntios 13:12 – “Agora nós vemos através de um espelho, em enigma”.
“De Providentia”, Sêneca.
A obra de Giordano Bruno, por exemplo, engrossou a presença do panteísmo no confuso caldo cultural do Renascimento.
“Stromata”, Clemente de Alexandria.
“Carta II”, Platão.
“Nosso pobre individualismo”, ensaio de Jorge Luis Borges publicado em “Outras Inquisições”.